“A Caminho” com o Ricardo.

O Ricardo sabe melhor que ninguém que o Caminho de Santiago chama pelos peregrinos. Desta forma, o percurso milenar sempre pairou à sua volta. Assim, quando foi desafiado para o fazer, o sim foi imediato, como se a decisão já tivesse sido tomada bem antes daquele momento. Lê esta divertida entrevista que te vai ajudar a preparar o teu próprio trilho até à Capital da Galiza.

  1. Por que fizeste o Caminho de Santiago?

O Caminho de Santiago sempre foi algo que gravitou em torno da minha vida, particularmente na fase final da adolescência e entrada na fase adulta. Cresci numa família religiosa, católica . 

Então, os temas das peregrinações e das questões de fé sempre foram um tema discutido em casa. Para além disso, também fiz parte de um grupo de jovens que, com uma certa frequência fazia etapas/troços do caminho pela altura das férias da Páscoa, eventos esses em que nunca tive a oportunidade de participar, apesar de me suscitar um natural interesse. 

Os meus pais já peregrinaram a Fátima várias vezes, mas confesso que nunca foi algo que me chamasse, não houve uma vocação que me impelisse a ir até à Cova da Iria. Quanto a Santiago, o panorama já é diferente. 

Tenho um amigo de família que já fez inúmeras vezes o caminho, partindo de vários pontos diferentes, com diversas durações e quilómetros percorridos – inclusive até já fez um livro sobre o Caminho de Santiago.

As experiências que narrava, aliadas aos testemunhos dos meus amigos, plantou a semente da vontade de descobrir que espiritualidade é esta que move milhares de pessoas a pegar numa mochila e num cajado, recobrirem-se de vieiras e setas amarelas e partir a pé a um lugar onde, curiosamente, já havia estado muitas vezes. Mas o culminar desta descoberta da necessidade de ir peregrinar a Santiago foi quando o meu irmão regressou a casa depois de fazer ele mesmo essa viagem. O sentimento que ele me descreveu foi a chama que deu alento à vontade. Quando a minha namorada me sugeriu que fôssemos fazer o caminho, o meu sim escapou-se-me antes sequer da minha boca se mexer.

  1. Quantos dias demoraste?

Para conseguirmos agendar o caminho com as nossas vidas quotidianas, programámos uma peregrinação de 5 dias para conseguirmos alcançar o objetivo de vivenciar a experiência de fazer o caminho sem pressas e correrias. 

  1. Que etapas fizeste?

Optámos por fazer o caminho português por ser o mais familiar e aquele do qual tínhamos mais feedback e histórias de outras pessoas – amigos e familiares, bem como a questão da proximidade. 

Como um dos objetivos secundários era obter a Compostela, decidimos, numa ideia muito pouco original, partir desde Tui. A divisão foi feita tendo em conta o número de dias em que gostaríamos de completar o caminho, bem como no que respeita aos quilómetros percorridos a cada etapa. 

O plano traçado passou por fazer primeiro o troço Tui – Redondela, cerca de 33 quilómetros (alguns mais, pois fizemos alguns desvios do caminho “original” evitando, por exemplo, a longa reta da zona industrial de O Porriño); em seguida, o troço Redondela – Pontevedra, aproximadamente 20 quilómetros; Pontevedra – Caldas de Reis, 22 quilómetros; Caldas de Reis – Padrón, 19 quilómetros e, finalmente, Padrón – Santiago de Compostela, 24 quilómetros.

  1. Qual foi a melhor refeição que fizeste no caminho?

Esta pergunta é muito fácil de responder: Entre Pontevedra e Caldas de Reis há uma povoação chamada Barro. Há umas belas cascatas perto da N550 chamadas Fervenzas do Barosa. Um pouco antes de chegar a estas cascatas, no caminho, há uma casa que converteu uma garagem num posto de paragem para peregrinos. Chama-se Furancho A Seca ou Furancho da Barosa. É um ponto de paragem que devia vir nos arquivos da biblioteca da Catedral de Santiago!

De uma forma mais séria, é um local de convívio e descanso onde se pode desfrutar da gastronomia galega no seu melhor – empanada, polvo, chouriços e embutidos, todos ao dispor numa grande mesa corrida. Basta apenas escolher, comer, desfrutar e no final apenas dizer aos amáveis estalajadeiros o que se consumiu, sendo presenteados sempre com um grande sorriso. Mas a verdadeira relíquia é o Alvarinho, o vinho sorvido numa tigela. É tão bom que se pode deixar de lado os voltarem e os analgésicos que aquilo cura tudo.

Essa paragem é uma dádiva caída para todos os peregrinos.

  1. Como te preparaste fisicamente para o caminho?

Não houve propriamente um plano físico para encarar o Caminho. Felizmente, não sofro de grandes maleitas físicas e pratico exercício físico com regularidade, pelo que me sentia preparado para o esforço físico redobrado que se antevia. Conheço quem faça os passadiços de Vila Nova de Gaia – cerca de 15km – como preparação, mas não achei que fosse necessário traçar algum plano especial para me preparar fisicamente.

  1. O que te deixou mais surpreendido no trajeto?

A quantidade da cor VERDE que há na Galiza. Aquela zona é absolutamente mágica, com os montes e bosques pintados desta cor, que transmitem uma sensação de paz e serenidade. A perfeita segurança que sentimos também é muito reconfortante – em momento algum sentimos receio de que algo de mal nos pudesse acontecer. A forma descontraída e até alegre com que os locais nos encaravam também foi um ponto muito positivo.

  1. Qual foi o momento mais difícil?

Acho que esta pergunta pode ser respondida sob a vertente física e a vertente psicológica. 

No que respeita à primeira, acho que o maior desafio físico foi o final do nosso primeiro troço Tui – Redondela. Em retrospetiva, seria talvez a única coisa que retificasse. Acho que ou partíamos a etapa e parávamos em O Porriño ou abrandávamos o ritmo. A subida após a aldeia de Rúa (Mos), chegando à capela de Santiaguiño do Monte e a íngreme descida até à estrada que nos leva até Redondela representaram, sem dúvida, o que mais custou nas pernas (e no espírito também um bocado). Felizmente, o albergue em que ficámos era logo à entrada de Redondela – digo felizmente pois as nossas pernas estavam literalmente a tremer e fraquejar quando lá chegámos.

Psicologicamente acho que os últimos quilómetros da chegada a Santiago são um teste à paciência de qualquer peregrino. Quando se alcança a localidade de O Milladoiro e se vislumbra finalmente a Catedral de Santiago, o coração palpita de ansiedade e excitação por ver o quão perto estamos! Se virmos no mapa, faltam uns 7/8 km para alcançarmos a meta… Coisa pouca para quem já leva uma centena de quilómetros nas pernas. Contudo, são esses mesmos quilómetros os que mais custam. Ver marcos atrás de marcos com setas a cada micro cruzamento, com aqueles números que parece que não mudam, como se o tempo não passasse. Passa mais de uma hora desde que vimos a Catedral e parece que retrocedemos; que estamos a andar para trás ou na direção errada, não fossem os nossos companheiros de marcha que vemos em todo o lado, no confluir de vários caminhos. Mas tudo vale a pena, pois o caminho faz-se caminhando e a chegada a Santiago compensa – e de que maneira! – as tribulações.

  1. Quem conheceste no caminho que nunca mais vais esquecer?

Honestamente, não sei se foi pela altura do ano ou pelo nosso horário ou ritmo de caminhada, mas não houve muitos peregrinos ou grupos que deixassem uma marca indelével. Naturalmente íamos reconhecendo caras “familiares” ao longo do caminho, pessoas que nos ultrapassavam ou que víamos a descansar um pouco mais adiante, como se se tratassem de uma espécie de marcos do próprio caminho. Talvez destacaria 4 pessoas ou grupos de pessoas:

A primeira pessoa foi logo aquela com quem partilhamos o quarto em Tui. Tratava-se de uma neozelandesa que estava a fazer o caminho com os pais, já septuagenários, e que fazia questão de tirar vários dias de férias todos os anos para fazer o Caminho. A força de vontade, a disponibilidade e o querer repetir e viver a experiência do caminho foram um bom mote impulsionador para os dias que se seguiram.

A segunda personagem foi um episódio breve, mas que marcou um ponto de viragem. Chegados a Pontevedra, a minha namorada tinha queixas já dos pés e parecia que estava um pouco desanimada (o que não era verdade, palavras dela). Fomos então procurar uma farmácia ou loja de calçado que vendessem palmilhas para as botas. Acabámos numa loja de artigos próprios para o caminho. 

Estava uma jovem italiana a experimentar umas sandálias e, quando olhámos para os pés dela, estavam repletos de pensos e compressas. A senhora da loja disse-nos que não sabia como ela ia acabar o caminho, tinha os pés numa lástima! Contudo, a jovem sorria. Estava feliz, parecia que as maleitas físicas mais não eram que uma fotografia, que os pés maltratados não eram um obstáculo e que só o facto de estar ali, a percorrer aqueles trilhos, eram o pão para a alma que ela precisava. Do impacto visual de ver as feridas, quase que chagas, ao reconhecimento da alegria que a rapariga sentia, devo dizer que mais nenhum de nós se queixou até ao fim do caminho.

Terceiro, o Don Pepe de Padrón. Personagem sempre louvada por todos os peregrinos, a sua amabilidade e boa disposição são absolutamente contagiantes e a forma como nos põe à vontade, como se fôssemos família e nos envia para o que falta do caminho com um abraço e um beijo na testa são únicas e especiais.

Por fim, queria mencionar uma família de catalães que fez o caminho ao nosso lado. Quase de forma literal. Um pai, uma mãe, uma filha adolescente e outra um pouco mais nova. Nada mais mundano. Cruzámo-nos inúmeras vezes no caminho, saudando-nos com um “Buen camino!” pela manhã e um sorriso ou uma palavra de alento ao longo do dia. 

Pouco falámos, cada um a viver o caminho à sua maneira. Mas era uma família unida que caminhava sempre junta, por vezes ia o pai à frente, outras vezes de posições já trocadas. Mas iam sempre juntos, em comunhão. Parece muito básico, mas isso deixava-me feliz, vê-los embalados no caminho. Chegámos à praça do Obradoiro a tempo de os ver chegar. Atravessámos a praça e demos um forte abraço. Todos tínhamos conseguido.

  1. O que não pode faltar na mala de um peregrino?

Em termos figurativos, há os clichés: vontade, fé, camaradagem, espiritualidade, etc. Tudo verdade, sem dúvida. Contudo, de pouco estes tópicos ajudam quando cai uma enxurrada de chuva que nos ensopa até aos ossos e nos adiciona uns 3 quilos de água à mochila.

Assim, de uma forma mais prática, creio que uma capa da chuva (não muito grossa) para nós e para a mochila é essencial. O clima galego deve ser primo do clima açoriano e a chuva pode aparecer subitamente pelo que o melhor é ir preparado.

Um pequeno kit de primeiros socorros (pensos rápidos, analgésicos, tesoura, compressas e pomadas) é essencial para precaver acidentes ou ajudar um peregrino em apuros. A primeira pessoa com quem falámos quando arrancámos de Tui de madrugada foi um português em busca de uma farmácia pois precisava de uns comprimidos que lhe aliviassem a dor. Felizmente, íamos preparados e conseguimos ajudar.

Água ou um cantil também devem ser incluídos na lista. A desidratação é insidiosa e causa estragos.

  1. Se só pudesses dar uma dica às pessoas que estão a pensar fazer o caminho, qual seria?

A resposta a esta pergunta também é fácil: Vai!

Não deve ser original, mas é bem aplicada. Se sentires curiosidade, uma vontade súbita ou prolongada no tempo, uma vocação, chamamento, seja o que for, é sinal de não hesitar e ir. Acho que o caminho é sempre diferente de pessoa para pessoa, não há muitos conselhos que se possam fazer pois a experiência final será a adição de muitos fatores. Porém, para ser um pouco útil a resposta, planear com algum critério acho importante. Não deve o que está planeado imperar sobre o que se está a viver no momento, mas deve servir como uma garantia de segurança de que as coisas estão a ir por bom caminho. Nós fomos em final de setembro e acredito que foi numa ótima altura pois a temperatura não é excessiva, nem as suas amplitudes e ainda temos o prazer de sentir o cheiro a uva e vindima pelo caminho.

  1. Qual foi a tua reação quando chegaste a Santiago?

Foi uma sensação estranha. Uma ambivalência de sensações. A sensação de glória e vitória de ter alcançado a meta com a nostalgia de algo que terminou. Curiosamente, cansaço foi a última das sensações que senti. No caminho, diz-se que as pernas trabalham e a cabeça descansa… Dito e feito, a serenidade tem um efeito calmante no turbilhão das nossas rotinas.

A última coisa que disse para mim quando me sentei no comboio de regresso a casa foi: Para o ano, estou cá outra vez… E assim será…

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