O Filipe é um peregrino que se apaixonou pelo Caminho de Santiago e, por isso, inspirou mais pessoas à sua volta para fazerem o trajeto milenar. Descobre mais nesta entrevista!
- Porque fizeste o Caminho de Santiago?
Em 2008, fui desafiado por um amigo a fazer o Caminho de Santiago, a ideia era ir de bicicleta no ano seguinte mas, por motivos logísticos, só conseguimos realizar a nossa aventura em 2010. Esse seria o meu primeiro Caminho de Santiago de bicicleta a partir da cidade do Porto. Quando regressei a casa, carregado de memórias e experiências inolvidáveis, partilhei toda esta emoção com o meu filho que, na altura, tinha 3 anos. Habituado às andanças das caminhadas e das provas de corrida, nas quais participava com ele, não seria difícil que a vontade de realizar o Caminho surgisse nele, também. A intenção ficou, ele foi crescendo e em 2017, começamos a dedicar-nos na preparação para a nossa aventura. E, em Junho 2019, lá estávamos os dois na Estação do Oriente em Lisboa, com todo o equipamento e preparados para o que o destino e o Caminho, nos reservasse. Confesso que, nessa altura, ainda não estava bem crédulo que ali estávamos os dois. Mas sentíamos o “chamamento” do Caminho e, era a primeira vez de ambos, no Caminho, a pé.
Quando fiz o Caminho de bicicleta foi bom, foi uma experiência repleta de emoções, mas o facto de se rolar muitos kms seguidos, acabamos por passar por locais e não os observar e não os sentir com toda a intensidade que lhe é merecida. Além de acreditar que a pé, nos permite ter uma maior proximidade com a alma do Caminho e, estaria acompanhado pelo meu amor maior e isso, não tem como descrever.
Desde o primeiro minuto as emoções estão de tal forma à flor da pele que é impossível segurar as lágrimas em cada novo passo. E, inevitavelmente, quem faz uma vez o Caminho, não consegue parar de o fazer.
O Caminho de Santiago tem algo especial, algo mágico, um poder tal, que nos leva numa viagem ao nosso interior, uma aventura de superação e aprendizado constante, com uma diversidade cultural e de vidas com as quais nos cruzamos que se torna viciante.
- Quantos dias demoraste?
Seguimos o roteiro e dicas do blog dos VAGAMUNDOS, um casal que escreve roteiros e dicas de viagens e também uma aplicação, sobre esses dados programei mais ou menos os kms que conseguíamos fazer por dia, não esquecendo que estava com uma criança. Então dividi o meu roteiro em 10 dias, por opção, sendo que 6 dias foram na caminhada, propriamente dita e os outros dias em dias, que denominei dias de logística, tendo aproveitado para passear e conhecer alguns sítios do nosso país. Dia 0, foi para a longa e cansativa viagem de Setúbal, onde resido, de carro até Lisboa Gare do Oriente, onde apanhámos o comboio até Nine (depois do Porto-Campanhã), onde mudámos de comboio para apanhar uma composição que nos levou até Valença do Minho. Em Valença ficámos num hotel e passámos o resto do dia a visitar Valença. Dia 1 Após o pequeno-almoço, iniciamos a nossa primeira etapa, de Valença até O Porriño. Dia 2 O Porriño até Redondela. Dia 3 Redondela até Pontevedra. Dia 4 Pontevedra até Caldas de Reis. Dia 5 Caldas de Reis até Padrón. Dia 6 Padrón até Santiago de Compostela. Dia 7 Santiago de Compostela até Vigo e depois Porto (Comboio). Dia 8 Porto até Aveiro (Comboio). Dia 9 Aveiro até Lisboa e Setúbal (Comboio e Autocarro).
- Que etapas fizeste?
Valença –O Porriño
O Porriño – Redondela
Redondela – Pontevedra
Pontevedra – Caldas de Reis
Caldas de Reis – Padrón
Padrón – Santiago de Compostela
- Qual foi a etapa que mais gostaste?
Todas as etapas têm suas particularidades e acabam por ser únicas e incomparáveis umas com as outras. Mas como sou apaixonado pela natureza, a que nos proporcionou momentos mais introspectivos, foi a etapa de Redondela a Pontevedra, embora tenhamos sido brindados com chuva.
- Qual foi a melhor refeição do caminho?
Por sinal, não posso dizer que houve uma refeição que foi melhor que outras porque, além de não nos ter privado de comer sempre em cafés e restaurantes (embora tenha sido um peso grande no orçamento), posso dizer que todas as refeições souberam pela vida. Até o mais simples dos “Café Solo”, teve um sabor que passa pelas papilas gustativas mas vai direito à alma. Não sendo uma refeição melhor que outras mas houve uma refeição que ficou marcada pelo produto local, e não poderia deixar de ser os famosos Pimentos Padrón, com os quais nos deliciámos, na vila que lhes dá o nome.
- O que te deixou mais surpreendido no trajeto?
Ao longo do percurso, existem estruturas de apoio onde não lembra ao diabo ir descalçar as botas. E falo de máquinas de vending, em abrigos com duas ou três cadeiras, ou até toldos com voluntários a servirem produtos alimentares, bebidas frias e quentes, e claro, carimbos.
- Qual foi o momento mais difícil?
Aceitar que o Caminho havia terminado e não iria caminhar mais, a experiência é tão boa que, quando chegamos a Santiago, apetece-nos continuar a caminhar infinitamente.
- Quem é que conheceste no caminho que nunca vais esquecer?
Todas as pessoas que se cruzam no nosso caminho, na nossa vida tem uma missão, mais que não seja a de nos desejar “Buen Camiño” e todas as pessoas com suas histórias de vida nos marcam um pouquinho. Mas como pai, não posso deixar de puxar a brasa à minha sardinha e de facto vi o meu filho a crescer a cada dia, tanto fisicamente como emocionalmente, socialmente, psicologicamente e posso dizer que conheci a tamanha força que ele tem.
- O que não pode faltar na mala de um peregrino?
Este assunto quase daria um livro (risos), das minhas experiências, o que não pode mesmo faltar é água, saco-cama, fita adesiva, tipo MEFIX (uma fita adesiva larga que usámos colocada em diversos pontos, para evitar as temíveis bolhas), e a credencial do peregrino.
Tudo o resto é supérfluo. As roupas vão se lavando, mesmo que não cheirem bem, ninguém se importa, porque todos estaremos no mesmo patamar. O mais importante não é o que levar dentro da mochila, mas sim a mochila em si, tem de ser A mochila e não aconselho que seja uma mochila qualquer.
- Quais são as caracteristicas de uma boa mochila?
A mochila é um elemento fundamental, numa caminhada de vários dias, seja em auto-suficiência ou não. Por ser um elemento com uma importância tão elevada, é imperativo que acima de tudo seja adequada ao corpo de quem vai carregar, estar adaptada ao peso e condições do que se vai levar dentro e do tipo de aventura que se vai ter. Existem várias mochilas, com várias características, capacidades e tamanhos, sendo que a sua escolha deve ser feita com muito cuidado e o ideal é experimentá-la, como eu fiz.
Coloquei dois sacos cama e pesos dentro (na loja) e testei assim. Uma das características a que dei muita importância depois de aprender que a mochila não deve ir com o peso em cima dos ombros, foi o acolchoamento das alças de ombro e cintura e o arejamento das costas, que acaba por dar um conforto em condições de maior calor. Por isso e resumindo:
– Alças acolchoadas (ombros e cintura);
-Boa respiração entre a mochila e as costas;
-Altura disponível entre alças cintura e ombros (a maior parte das mochilas >dos 40l já têm sistema para regulação da altura).
Estes são aspectos imperativos!
Depois poderemos ter atenção ao peso da própria mochila, porque será a ter em conta, na hora de prepará-la e poderemos completar a mochila com alguns adereços e utensílios que são totalmente opcionais.
No meu caso e do meu filho, coloquei um suporte para garrafas (500ml), bolsas para levar o telemóvel à mão, apito de segurança, uma bolsa de protecção impermeável e um mosquetão, para prender as lanternas nas alturas que foi necessário caminhar de noite. Além disso, não nos podemos esquecer da CONCHA! Que identifica (simbolicamente) os peregrinos a Santiago.
- Se só pudesses dar uma dica às pessoas que estão a pensar fazer o caminho, qual seria?
O mais importante para usufruir em pleno do caminho é: Calçado Certo, Mochila Certa e Disponibilidade de tempo. Não vão com dias contados à justa. Para fazer os 6 dias de caminhada eu tirei 18 dias de férias. A disponibilidade de tempo permite-nos parar quando estamos cansados e fazer etapas mais curtas, ou ficar mais do que um dia num local. O caminho não é uma corrida e o objectivo não é chegar à Catedral, mas sim fechar os olhos e sentir e deixar que seja o caminho a passar por nós.
- Qual foi a tua reação quando chegaste a Santiago?
À chegada à famosa praça do Obradoiro, existe um misto de emoções, que mistura a alegria de todos os que chegam, os reencontros, o relembrar de tudo o que vivemos até ali, a sensação de superação, sentimo-nos invencíveis mas ao mesmo tempo tão vulneráveis e ficamos apenas gratos por existir e estar ali e deixamos fluir as emoções entre risos e lágrimas, gritos, abraços emocionados e apertados, felicitamos as pessoas com quem nos cruzámos, respiramos fundo e…. Quando vamos fazer mais um caminho é a pergunta que salta logo.
- Qual foi a reação do teu filho?
Bem, para esta questão nada melhor do que ser ele a responder.
“Assim que cheguei a Santiago, lembro-me de ver imensas pessoas, famílias, crianças… a passear, a peregrinar, todos com um motivo, um objectivo de vida. Isso fez-me reflectir em muitas que as pessoas, hoje em dia, não valorizam tanto, nomeadamente a UNIÃO.
A união das famílias com crianças, que pouco sabem sobre o caminho, mas estão ali com os pais e amigos.
Desfrutar de tal aventura é uma sensação inexplicável. Foi extraordinário o quão me senti confortado ao chegar a um lugar, no qual não conhecia ninguém, nem nada, mas senti-me em casa, senti-me feliz e aconchegado, com as pessoas que ali estavam com o mesmo propósito que eu.
Uma experiência incrível, com a pessoa certa.”