O Samuel é um peregrino do princípio do século. Seguindo o seu trajeto desde Salamanca, sem se preocupar com os dias que passavam. 500 quilómetros passados, chega a Santiago de Compostela com muitas histórias para contar, que podes ler nesta entrevista!
- Por que fizeste o caminho de Santiago?
Por volta de 1994, era eu sargento no Exército em Mafra, e com mais um camarada combinamos uma semana de férias a passear de carro para conhecer a Galiza.
Quando passamos em Santiago de Compostela e visitamos a Catedral acho que fui atraído para o universo do “Camiño” sem me aperceber. Foi a primeira vez que tive conhecimento que existia esta peregrinação naquele local (nesta altura, a internet não era o que é hoje )
O tempo passou e, em 2001, mudei-me para a Serra da Estrela. Para conseguir o trabalho a que me propunha e pensando que se tudo corresse bem, fiz uma promessa a Santiago de ir até à Catedral a pé. Tinha ali feito a minha promessa. Apenas por isto.
Em 2002 comprei um livro guia do Caminho em Salamanca e foi com base nele que decidi avançar.
Sem falar com ninguém. Quase sem informações. Sem saber muito bem o que era um albergue ou o que me esperava. Sem qualquer apoio.
- Quantos dias demoraste?
18 dias – Caminhei cerca de 500 km
- Que etapas fizeste?
Não sei o que responder. Talvez 18? Segui na íntegra as etapas que o guia indicava, dormindo nos albergues respectivos.
- Por que escolheste o Caminho Francês?
Na altura, eu trabalhava numa empresa de animação turística na Serra do Caramulo. Como as minhas folgas semanais eram sempre durante a semana, geralmente ia para Salamanca, devido à movida que todos os dias se vivia por lá. 😉
Passei a adorar Salamanca, que é ainda hoje um dos meus locais favoritos. Foi por lá que comprei o guia. Na altura, fazia todo o sentido que começasse lá o meu Caminho.
E que boa escolha foi!
Logo ao 2º dia, tive um dos momentos mais bonitos do Caminho, e que me ensinou a verdadeira essência do Caminho e das pessoas ligadas aos albergues que podem ser muito mais do que apenas responsáveis pela chave do mesmo. No meu coração para sempre!
- Qual foi a melhor refeição do caminho?
Bodega-Restaurante “Bodegón de Ozaniego”, em Alija del Infantado.
Foi uma experiência inesquecível.
Quando entro, parece que sou transportado para a Idade Média. Estou num castelo. A decoração é perfeita: armaduras, archotes, mesas de madeira maciça. É tudo absolutamente fantástico! Tenho de descer uma enorme escadaria para chegar ao local da refeição. É extraordinário!
Escolhi a especialidade da casa: Bife na Pedra. Uau!!! Se pudesse levar para casa o que me sobrou, acho que tinha mais duas refeições garantidas!!
- Como te preparaste fisicamente para o caminho?
Não fiz nenhuma preparação especial. Na altura trabalhava em animação turística na Serra da Estrela. Para mim, o dia a dia quase sempre incluía caminhadas e demais atividades na montanha, pelo que não preparei nada em especial para o Caminho.
- O que te deixou mais surpreendido no trajeto?
Tantas coisas me surpreenderam. Mas talvez tenha de escolher a minha viagem interior. Eu fiz o Caminho sozinho. Estacionei o carro junto ao Estádio Universitário de Salamanca, passei na Plaza Mayor, carimbei a credencial e parti a pé. Sozinho. Cheguei a Astorga, no Caminho Francês, ao 8º dia. Até lá, caminhei sempre sozinho. Quando chegava a um albergue, só lá estava eu. Os albergues na via da Prata, a partir de Salamanca, não têm ninguém responsável. Como o fluxo de peregrinos era reduzido, ao chegar a cada povoação lia no meu guia o local onde ir buscar a chave do albergue (geralmente um café).
Assim, foram 8 dias de muita introspecção que me levaram a lugares do meu “eu” que eu desconhecia por completo. Talvez tenha sido essa viagem o que mais me surpreendeu no Caminho.
- Qual foi o momento mais difícil?
A etapa do 7º dia entre Alija del Infantado e La Bañeza – 21,6km.
Já vinha caminhando há vários dias com uma fractura de esforço na perna devido ao peso exagerado da minha mochila. Foram dias de muito sofrimento, caminhando com muito calor.
Quando cheguei a La Bañeza, cheguei à conclusão de que não conseguia continuar desta forma. Estava de rastos. Sozinho.
Fiquei num albergue onde só estava eu. Dormi num salão onde estariam dezenas de camas de hospital (alguma doação que tiveram). E só eu.
E foi nessa altura que tive de tomar uma decisão. Ou desistia do Caminho e regressava a casa, ou despojava-me de todo o material supérfluo que trazia na mochila.
E foi o que fiz.
E deixei no albergue (e juro que sim eu caminhava com isto às costas…): Uma tenda, um saco cama, comida, fogão de montanha Coleman, talheres, pequena panela para fazer comida, caneca, sal, detergente para a louça, esfregão para a louça.
Deixei uma carta no albergue ao Sr. Padre a explicar que ofertava tudo aquilo a quem precisasse e retomei o Caminho. E cheguei a Santiago!
- Quem é que conheceste no caminho que nunca vais esquecer?
Fernando Albiol e Katrine.
Ao 11º dia, a jornada levou-me de Ponferrada a Villafranca del Bierzo
Ao chegar a Villafranca del Bierzo, o Caminho dava-me 2 opções. Ou pela estrada de alcatrão ou por caminho de terra por entre as propriedades repletas de vinhas. O destino tem destas coisas: escolhi, como sempre o faço, o caminho por terra batida.
No meio de umas vinhas encontro uns peregrinos, completamente perdidos, sem saberem por onde ir, pois as marcações naquela zona não se viam. Chamei-os e disse-lhes “Ei!!Não é por aí!”
Chegou-se um deles a mim, a dizer que eu estava errado – não era por ali, pois tratava-se de um campo semeado. Insisti que era por onde eu indicava e lá me seguiram. E eu tinha razão. Ainda não sabia que a partir daí, até Santiago faríamos o Caminho juntos.
E não é que descobrimos que o Fernando faz anos no mesmo dia que eu?
Faz este ano, 2023, 21 anos que fiz este Caminho. Desde essa altura e até aos dias de hoje, uso todos os dias uma cruz de peregrino que o Fernando usava e me ofereceu quando nos despedimos.
- O que não pode faltar na mala de um peregrino?
Fé. Perseverança. Confiança. Resiliência.
Tudo o resto são apenas bens materiais que podemos comprar em qualquer lado. Mas são estes sentimentos que nos levam a fazer o Caminho. Os outros bens, levam-nos a fazer os trilhos.
- Se só pudesses dar uma dica às pessoas que estão a pensar fazer o caminho, qual seria?
Abrirem o coração e o espírito para receberem tudo o que o Caminho tem para dar. Cada Caminho é único – é nosso. Isso é sem dúvida o mais importante.
- Qual foi a tua reação quando chegaste a Santiago?
Chego à Praça do Obradoiro por umas escadas onde estão uns músicos a tocar música celta galega com gaita-de-foles. O ambiente não podia ser mais perfeito.
Quando piso o quilómetro zero sou invadido por uma “explosão” de sensações. Sento-me no chão a olhar para a catedral e sou invadido por uma paz interior inacreditável. Sei que naquele momento estou no sítio certo. Depois, é um misto de felicidade por ter terminado o Caminho e de tristeza por ter terminado o Caminho. São os abraços entre os peregrinos e já algumas despedidas. E, entretanto, há tanto a fazer que não penso mais nisso. Quero ir ao Pórtico da Glória e à Missa do Peregrino ver o Botafumeiro, quero ir buscar a Compostela, quero ir à tasca Gato Negro comer umas tapas e beber umas taças de Ribeiro…
Que dia bonito e inesquecível.
Ultreya!!
Durante o seu Caminho, o Samuel levou um gravador de cassetes e todos os dias registava um diário do percurso milenar. Com eles, criou um website sobre a sua travessia até Santiago De Compostela que podes ver aqui: https://omeucaminho.webnode.com.pt/