Em Outubro de 2021, o Anselmo fez-se ao Caminho Português da Costa. Com ele foi o seu amigo de sempre, Pedro, e juntos começaram uma aventura de superação, amizade e convívio, durante 10 dias. Pelo percurso, encontrou obstáculos e natureza que nunca irá esquecer. Nesta entrevista, vais conhecer uma personalidade ímpar, que nos inspira todos os dias.
Por que fizeste o caminho de Santiago?
Anselmo: O meu grito de Ipiranga ! Já tinha planeado fazer o Caminho, antes da doença, nunca houve uma promessa ou aposta em tal sentido, mas, por algumas conversas de pessoas conhecidas e publicações nas redes sociais, a coisa foi-se entranhando. Fiz, por várias vezes, o Caminho até Fátima, mas sempre me diziam que Santiago era doutra dimensão. Desde o inicio da minha doença (2018) até Outubro de 2021 (inicio do Caminho), 3 anos e meio tinham passado. Foram anos terríveis: parti a coluna por três vezes, fiz duas cirurgias à coluna, fiz quimio, durante oito meses, fiz o primeiro autotransplante, em Agosto de 2019, que correu muito bem e me trouxe de novo à vida – apesar de ter perdido 40 quilos de peso. Convalescença e recuperação, ao fim de um ano, e com uma espantosa recuperação, sou chamado ao IPO do Porto, para uma reunião onde me “convidaram” a participar num estudo. Estudo esse que, além de novos fármacos, englobava novo autotransplante. Aceitei, para meu bem e de todos que padecem desta doença (mieloma múltiplo). Agosto de 2019: mais um mês fechado no isolamento, desta vez, sem as doses de morfina, como no primeiro – a coisa foi um bocado violenta, mas, mais uma vez, consegui ultrapassar. O certo é que, passado um ano (Agosto de 2021), interiorizei que tinha que fazer o Caminho. Precisava de me testar! Foram três anos terríveis fechado em casa por causa das infeções e da pandemia. Será que eu era um cadáver ambulante ou estava pronto para dar asas ao meu sonho? Estava bem fisica e mentalmente. Inicialmente, a minha ideia era ir sozinho, mas ainda bem que não o fiz . Depois de algumas conversas com o meu amigo e companheiro, Pedro Lascasas, que tinha o mesmo sonho que eu, acordámos que sairíamos no principio de Outubro , a única coisa que planeámos é que o Caminho seria sempre junto à costa.
Quantos dias demoraste e que etapas fizeste?
Anselmo:
1 º Dia – 21 de Outubro – Sé do Porto – Povoa de Varzim – Depois de duas falsas partidas (devido aos afazeres profissionais do meu amigo Pedro), iniciámos, finalmente, o nosso Caminho: mochila às costas e lá arrancámos da Sé do Porto, com toda a coragem e confiança. Excelente dia para caminhar, não fosse, de vez em quando, as famosas nortadas e teria sido perfeito. Conseguimos caminhar até á Povoa de Varzim e chegámos já pelo fim da tarde, No entanto, o Pedro começou a panicar, como não tínhamos nada marcado para pernoitar, toca a procurar! Entrei num escritório de uma imobiliária e, educadamente, perguntei se conheciam, por ali, algum sítio onde pudéssemos pernoitar. Indicaram um alojamento local lá perto e, quando lá chegámos, tinha o contacto tlf. na porta. Ligámos montes de vezes, sem sucesso , até que um senhor que ia a passar nos informou que estava fechado, porque a senhora estava doente. No entanto, e amavelmente, informou-nos de um outro, a cerca de 1 KM. Lá chegámos, mesmo em frente ao Mercado Municipal “Réve D´or “, assim se chamava o alojamento. Fomos atendidos por uma senhora com pronuncia francesa, muito amável. Logo na receção, ficámos encantados! A decoração era toda alusiva a Santiago o que significava que já era hábito ser frequentado por peregrinos, como nos confirmou a senhora – instalações do melhor – pagámos 20 euros.
2 º Dia – 22 de Outubro – Póvoa de Varzim – Chafé – Oito horas da manhã. Toca a dar corda aos “vitorinos”. Descemos a rua até à praia e tomámos o pequeno almoço. Mais um dia maravilhoso. É impressionante os KM de passadiço que percorremos sozinhos – nunca iria imaginar: campos de golfe, áreas protegidas para nidificação e observação de aves, qualquer coisa de maravilhoso . Até agora, estávamos radiosamente felizes por termos escolhido caminhar pela costa. Almoçámos mesmo à entrada da ponte sobre o rio Fão. A seguir ao almoço, descansámos um pouco e toca de seguir caminho. Depois de atravessarmos Esposende, começámos a ver indicações de um Albergue em Marinhas. Seguindo as indicações das setas amarelas, lá chegámos ao Albergue. Ficámos espantados, um edifício novo e, então, quando entrámos: Uau. Fomos recebidos por uma voluntária da Cruz Vermelha. O albergue cheirava a novo, super limpo, com janelas a deixar entrar um sol maravilhoso. A Senhora, amavelmente, lavou-me os pés (não podia fazer nada pelas bolhas) , como ainda era muito cedo, decidimos seguir caminho (com muita pena nossa , pois o albergue convidava mesmo a uma sorna), perguntámos se mais para a frente haveria alojamento, mas não souberam indicar nada. Acabámos o dia estourados, em Chafé. Ficámos num alojamento local chamado “Casa do Campo do Forno”, 20 €, super espetacular.
3 º Dia – 23 de outubro – Chafé – Carreço – Novamente, oito da manhã e bem retemperados, não tínhamos qualquer data ou hora definida. O nosso desejo era fazer o Caminho que já tinha começado a fazer das suas! De facto, o espírito do Caminho já se tinha entranhado em nós. Uma etapa linda, almoçámos à entrada da ponte de Viana do Castelo, numa churrasqueira com pessoas super simpáticas, muito agradáveis, que, inclusive, nos convidaram para, na altura das festas da Senhora da Agonia, irmos lá. Eles têm barco e nós iríamos com eles à procissão do Mar. Foi das etapas mais bonitas e marcantes, estávamos a chegar a Carreço, quando começámos a ver indicações de um Albergue (Albergue do Sardão). Parámos num pequeno café-mercearia para perguntar se ainda era longe. Fomos amavelmente informados e mais, o senhor até ligou para o Albergue, porque o responsável era seu conhecido. Lá falou com ele a dizer que estavam ali dois peregrinos que precisavam de alojamento. Entretanto, passou-me o telefone, para falar com o senhor Nuno, responsável do Albergue. As notícias não eram as melhores (ou eram?). Fomos informados de que o Albergue estava cheio, não por peregrinos, mas sim por um grupo de Espanhóis que lá se juntaram para o fim de semana. O Nuno, simpaticamente, pergunta: vocês querem é tomar banho e pernoitar? Por isso, se quiserem, têm aqui pegado ao Albergue a minha amiga Ana, que gosta de ajudar os peregrinos, e sei que já lá estão duas espanholas, mas ainda tem vaga para mais duas pessoas. Ó santo do senhor, é isso mesmo que queremos! Lá chegámos a casa da senhora, o Nuno já lá estava. Apresentou-nos e lá pernoitámos, 10 € , uma vivenda super espetacular. Mas quem nos deixou sem palavras foi a senhora, pensava que já não havia pessoas assim.
4 º Dia – 24 de Outubro – Carreço – Caminha – Hoje, saímos mais cedo meia hora. Calhou. Foi quando acordámos. A senhora tinha posto uma cafeteira com café à porta, para, quando saíssemos, aquecer o estômago. Eu e o meu amigo Pedro estávamos felizes, as coisas (tirando as minhas bolhas) estavam a correr tão bem. As pessoas eram tão simpáticas, o sol continuava a brilhar, que mais poderíamos pedir? Não pedimos, mas fomos brindados com uma etapa linda, maravilhosamente relaxante. Almoçámos em Vila Praia de Âncora, mas, depois de uma linda manhã, pela primeira vez desde a nossa saída, a chuva fez a sua aparição. Vestimos os kispos, não tínhamos capas de chuva, e toca a marchar. Ficámos encharcadinhos. Não é fácil caminhar junto ao mar, com chuva, mas lá conseguimos caminhar até Caminha. Tentámos encontrar o Albergue, mas foi inglório. Já perto da saída de Caminha, encontrámos um alojamento local. Era uma cave e pagámos 20 euros, mas estávamos tão encharcados que até debaixo de uma ponte ficávamos. Tomámos um rico banho que até nos fez esquecer a chuva. Fomos procurar o que comer e encontrámos um cafézito lá perto. Enganámos o estomâgo e fomos descansar, cansados, mas felizes .
5 º Dia – 25 de Outubro – Caminha – Mougás – Oiá – Com roupa seca e meia húmida, às oito da manhã, pusémos, novamente, pés ao Caminho. Íamos com algum desconforto, mas, quando chegámos ao parque de campismo de Caminha, já estávamos quentinhos. Fomos os primeiros do dia a fazer a travessia de barco para a Guarda. Deixávamos Portugal, até aqui, as coisas tinham corrido muito bem, mais canelada, menos canelada. Para quem vinha completamente ao calhas, o saldo era extremamente positivo, o espirito do Caminho tinha tomado conta de nós. Já não éramos nós! A única coisa que nos deixava pensativos é que, até aqui, nos tínhamos cruzado com poucos peregrinos e os que encontrámos eram doutras nacionalidades. Depois de perguntar, indicaram um café a uns três km. É que ainda não tínhamos tomado o pequeno almoço. Uma etapa muito bonita, que nos levou até Mougás, mais uma vez, estávamos a navegar quanto ao alojamento, mas, entretanto, começaram a aparecer indicações do Albergue (Aguncheiro). Mais uma vez, o Caminho nos guiava! O Albergue tinha aberto, precisamente, nesse dia , tinha estado fechado devido à pandemia – muito bom, pagámos 12 euros! Tinha um café ao lado, mas estava fechado. Estávamos preparados para não comer, nesse dia, mas o responsável do Albergue arranjou-nos uma empada e duas cervejas , que ainda hoje não sei onde foi buscar, mas certo é comemos e bebemos e dormimos uma noite fantástica embalados pelo mar, mesmo em frente.
6 º Dia – 26 de Outubro – Mougás – Oiá – Vigo – A etapa mais longa e “violenta”. Depois de sairmos do Albergue, com um radiante sol, queríamos tomar o pequeno almoço, mas não aparecia sitio para tal, ao fim de meia dúzia de km, apareceu um café-restaurante, mas com aspeto de estar fechado. É que, em Espanha, antes das dez horas da manhã, não havia nada aberto, mas, neste, esperava-nos uma surpresa. Estava sem clientes, mas estava aberto. Perguntámos se podíamos entrar, ao que foi respondido afirmativamente. Quando começámos a pedir, diz-nos o senhor: São Portugueses? Respondemos que sim e, então, o senhor diz: também eu! Estou aqui há dezoito anos. Sou o único que abre de manhã cedo. Senão, não tinham pequeno almoço tão cedo. Foi agradável ouvir falar Português. Despachados, o senhor lá nos desejou boa viagem e arrancámos: a parte mais bonita desta etapa foi Baiona, muita coisa bonita para ver. Fizemos um piquenique na praia e fomos apreciando todas as coisas bonitas que nos iam aparecendo. A parte mais dura foi à entrada de Vigo. Cansados, perdemo-nos e fizemos km desnecessários, dentro da cidade de Vigo. Chegámos ao Albergue, pelas 9: 30 horas. O Albergue fechava às dez. Aqui, pagámos dez euros. Muito bom (sendo municipal). Em baixo, era a receção; e a sala de estar e jantar. Os quartos eram em cima, mas tinha elevador. Estava tão cansado e abatido que nem jantei. O Pedro ainda foi à rua buscar uma piza (o Pedro aguentou-se muito bem hoje, o seu apoio foi crucial). Quando chegou, já eu dormia, roupa vestida e tudo. De manhã cedo, estive para aí meia hora debaixo do chuveiro, valeu a pena fiquei como novo.
7 º Dia – 27 de Outubro – Vigo – Pontevedra – Aqui, tínhamos hora para sair do Albergue (7 horas). Quando chegámos à rua, era noite escura. Até pensámos que nos tínhamos enganado na hora. Acabou por ser bom, pois saímos de Vigo sem trânsito e sem a confusão do dia anterior. Só quando chegámos a Redondela e começámos a ver que o panorama ia mudar, ficámos mais alegres. Assim sim, já era o Caminho! Sítios lindíssimos, os campos, os cavalos. Aqui, já nos cruzámos com muitos peregrinos. O engraçado, não encontrávamos Portugueses. Caminhámos até Pontevedra. Conseguimos arranjar alojamento local, no A Loxa. Bom, 15 euros. Ainda deu para dar uma volta na parte velha da cidade e comprar o jantar .
8 º Dia – 28 de Outubro – Pontevedra – Valga – Esta fica para a história. Saímos cedo, estávamos bem descansados. Já tínhamos esquecido Vigo. Oito da manhã, estávamos a atravessar a ponte do Burgo – madrugada escura – começámos a subir avenida fora. A certa altura, demos por ela que vinha um outro peregrino um pouco atrás. Eu e o Pedro íamos tão distraídos na conversa que, se não fosse uma senhora que andava a passear o cãozito a avisar, já íamos sempre em frente. Devíamos ter virado à esquerda, uns vinte metros antes, mas o mais engraçado é que o outro senhor também vinha atrás de nós! Claro, entabulámos conversa: então amigo, também vinha a pensar na vida? A verdade é que vinha a olhar para vós e nem me apercebi do desvio! Diz ele, num Português perfeito. Que porreiro, já não falávamos para um Português, há algum tempo. Depois das apresentações, lá seguimos caminho. Já não éramos dois, agora éramos três: o Anselmo, o Pedro e juntou-se o João. Mais um dia maravilhoso, paisagens fantásticas, tivémos a companhia do João até às cascatas de Barros, que não conhecíamos e, não fosse ele, não conheceríamos, porque tem que se sair do Caminho, para ir até ao parque e às cascatas. O João, que já era um peregrino experiente, disse para apreciarmos. Ele ia para a frente, tentar chegar a Valga para arranjar alojamento, porque, do Albergue, ninguém atendia o tlf. e, supostamente, vinha chuva. Depois de algum descanso, lá voltámos ao Caminho. Por volta das 17.00 horas, o João descansou-nos com uma chamada, dizendo que estava em Valga e já tinha alojamento marcado. Maravilha! Chegámos por volta das 19:00 horas ao Albergue. Fomos simpaticamente recebidos pelo responsável que logo nos encaminhou para um quarto onde já o João nos aguardava. Muito bom, por 12 euros. Arrumámos tudo, tomámos um belo banho e jantámos, mesmo em frente ao Albergue. Estávamos a sair para jantar quando começou a chover. E bem. Eu e o Pedro ficámos todos contentes. Já podíamos estrear os ponchos que tínhamos comprado em Baiona.
9 º Dia – 29 de Outubro – Valga – Milladoiro – Saímos às sete da manhã, ordens do João! Tomámos o pequeno almoço, do outro lado da estrada, e toca a abalar. A meio da manhã, o João deixou-nos novamente e arrancou para a frente. Havia uma etapa que ele tinha deixado por fazer, por causa de encaminhar um casal de brasileiros, então, ele queria ir até Santiago apanhar o autocarro para trás, para fazer a etapa que faltava e vinha ter connosco. Passámos Padron, fizemos lá uma visita. Fomos levantar a Padronela e seguimos até Milladoiro – por indicação do João, claro. Nós sabíamos lá onde ficava Milladoiro ou se tinha Albergue. Certo é que, ao fim da tarde, lá chegámos. Epá, isto parecia um hotel. Que nível, 12 euros. Uma construção nova e moderna, com tudo de bom e do melhor: banhos, camas. A sala de estar tinha lareira e que bem que soube quando, já de noite, choveu novamente. Estávamos a jantar – hoje deu para ficar mais um bocado na conversa. Tínhamos feito amizade com uma Peruana, uma Coreana e um Ucraniano que já tínhamos conhecido em Vigo. Éramos os únicos ocupantes do Albergue. Ficou combinado, no dia seguinte, seguiríamos todos juntos .
10 º Dia – 30 de Outubro – Milladoiro – Santiago – Às 8 horas e depois de tomarmos o pequeno almoço, lá arrancámos para a derradeira e última etapa. Esta etapa já é difícil de descrever, um turbilhão de sentimentos, a vontade de chegar e a nostalgia do que ficou para trás. Hoje, 30 de Outubro, eu comemorava 60 anos de idade. Tinha, depois de tantas privações e incertezas, alcançado um dos meus sonhos. Chegados a Santiago, fomos à loja do peregrino buscar a Compostela e tirar a senha para assistir à missa. O João tinha pedido para esperar por ele que à tarde estava lá, mas, quando acabou a missa, já ele nos tinha encontrado. Abraçámo-nos os três e foi uma explosão de sentimentos. O Pedro e o João abraçavam-me a darem os parabéns pelo aniversário. Foi um momento único.
Sendo que és doente oncológico, tiveste algum cuidado redobrado para preparar o caminho? ?
Anselmo: Não. O facto de serdoente oncológico não me limitou, mas, nos dois primeiros dias, ia a caminhar e não me saía do pensamento como as coisas iriam correr: será que iria aguentar? É que, logo no primeiro dia, fiquei com bolhas. Sei que em casa estavam todos colados aos tlf. a ver quando eu ligava, para me irem buscar. Não queria deixar o meu amigo Pedro dependurado, depois de termos adiado a partida, por duas vezes. Claro que a minha médica do IPO nem sequer sonhava. Já lhe tinha falado sobre isso e ela disse que me mandava para o psiquiatra. A única altura que tive mais medo foi em Vigo, que quase desfalecia com o cansaço.
Como foi fazer 280 km sempre com a mesma pessoa lado a lado?
Anselmo: Ter feito o caminho com o meu amigo Pedro foi o melhor que podia ter acontecido, tenho a certeza que o sentimento é mútuo. Nascemos a 500 mtrs. um do outro. Fomos companheiros de meninice. Fomos companheiros de escola. Só a partir do casamento ficámos mais desviados. Tínhamos vidas profissionais diferentes, não nos víamos com tanta regularidade, mas, sem dúvida, o Pedro foi a pessoa certa para fazer o Caminho, durante 10 dias e 280 km. Estávamos numa fase em que ambos precisávamos de desabafar, portanto, ninguém melhor do que o Pedro.
O que te deixou mais surpreendido no trajeto?
Anselmo: O que me surpreendeu no trajeto foi a amabilidade das pessoas. Se todos fôssemos peregrinos, não havia maldade no mundo! Como é evidente, ninguém pegou em nós ao colo, não ficámos de borla em lado nenhum. O que comemos, pagámos. Mas há um sentimento diferente nas pessoas. Por momentos, toda a maldade desaparece. Este foi o primeiro Caminho, não sei ainda como são os outros [caminhos], no entanto, ou por ser o primeiro, acho que é impossível encontrar outro caminho tão belo. Estive em sítios e vi coisas que nem em sonhos. É impossível viver a vida, (não direi todos os dias) sem pensar no Caminho.
Qual foi o momento mais difícil?
Anselmo: O momento mais difícil foi, sem dúvida, Vigo. A etapa foi muito longa e desgastante e, quando chegámos a Vigo, foi como um balde de água fria! Tanta gente. Tantos carros, motas, bicicletas. Até então, tínhamos caminhado pelo Paraíso, mas tínhamos que passar pelo Inferno. Foi um verdadeiro teste. Fizemos questão de ir para o Albergue, mas, até o encontramos, por mais que uma vez, estive a desfalecer. Sempre com o apoio do meu grande companheiro, que estava também cansado, lá íamos andando e perguntando, parando para descansar, algumas vezes. Aqui, as pessoas já eram completamente diferentes. Quando pedíamos informação, alguns nem paravam. Sem dúvida, esta etapa estava a pôr em causa tudo o que tínhamos sentido até aqui. Quando encontrámos o Albergue, entrámos , fizemos o check-in – eu nem comi nem tirei a roupa – deitei-me e desliguei completamente. De manhã cedo, tomei um banho bem revigorante e arrancámos. O meu amigo Pedro dizia para andar mais devagar, mas eu só queria sair daquele sitio (Vigo), antes que começasse tudo a mexer novamente.
Qual foi o albergue mais confortável em que ficaste?
Anselmo: O Albergue mais confortável que encontrei foi, sem dúvida, Milladoiro. Impressionou em todos os aspetos: limpeza , conforto , espaço , estavacompletamente siderado, nunca imaginei um Albergue destes no Caminho. Acho que foi um mimo, depois de Vigo .
Qual foi o trajeto mais bonito? Portugal ou em Espanha?
Anselmo: Vi coisas tão lindas e inesquecíveis, tanto em Portugal como em Espanha , que seria desonesto da minha parte individualizar. O que é bonito, de facto, é o Caminho no seu todo . Se não tivesse passado em Vigo nem teria notado a diferença entre Países. O Caminho isola-nos do resto do Mundo.
Quem é que conheceste no caminho que nunca vais esquecer?
Anselmo: O João! Ficará, para sempre, nas nossas vidas. Tanto eu como o meu amigo Pedro adotámo-lo como irmão e penso que o João nos adotou também.
O que não pode faltar na mala de um peregrino?
Anselmo: Tudo e nada! Posso dizer que levava o mínimo indispensável. No entanto, em Angeiras, logo no primeiro dia, encontrámos um amigo meu a quem deixei metade das coisa que levava. Todos os dias, vestia a mesma coisa, calções elásticos, calções de pano por cima, uma t-shrt e, se estivesse frio ,tinha sempre um kispo; e agora também já tinha um poncho para a chuva, que comprei em Baiona. O que considero essencial: cuecas e meias lavadas, todos os dias. O resto, qualquer coisa serve. Mas o que não pode faltar a ninguém, ninguém mesmo: resiliência, fé determinação e esperança. Sem isto, a mochila vai estar sempre vazia.
Se só pudesses dar uma dica às pessoas que estão a pensar fazer o caminho, qual seria?
Anselmo: A dica que posso deixar a quem vai, pela primeira vez, fazer o Caminho é: Vão! Nada vos vai faltar. Vão, simplesmente. Deixem as coisas fluir. Acredito que possam ter alguns receios, mas não temam, a transformação que vão sentir vai fazer com que nada os detenha! Claro que cada um sabe de si, mas tenho a certeza absoluta de que o que nos transforma é o desconhecido. É o deixar acontecer, mochila à costas e pés ao caminho. Porque hotéis marcados, mandar a mochila em carrinhas, não sei, não me parece que seja esse o espirito, mas ………
Qual foi a tua reação quando chegaste a Santiago?
Anselmo: Quando eu e Pedro chegámos a Santiago (o João tinha ido fazer uma etapa que lhe faltava), havia um misto de emoções. A alegria de termos chegado e a tristeza de ter acabado! Apenas nos abraçámos. O Pedro deu-me os Parabéns pelo meu aniversário e lá fomos à oficina do peregrino levantar a nossa Compostela e a senha para ir à missa. Ainda fomos à Igreja de S.Francisco, porque o João nos tinha explicado que lá também nos carimbavam o passaporte e nos davam um diploma (como a Compostela): assim fizemos. Já quando passámos em Padron, fomos levantar a Padronela, porque o João nos disse, senão, provavelmente, teríamos passado sem saber. O momento alto da chegada estava reservado para quando o João chegasse , foi incontrolável. Abraçámo-nos os três, exteriorizamos os nossos sentimentos. Foi, de facto, um momento marcante, mais marcante ficou quando o João me deu uma prenda de aniversário. Uma seta em madeira com a gravação de um peregrino. Disse que a encontrou quando vinha a fazer o Caminho e pensou: está aqui a prenda para o Anselmo. Almoçámos juntos , fizemos o Caminho de regresso juntos. O João ficou em Guimarães, onde vive. Custou bastante a despedida, mas não seria para sempre (já no reencontrámos na semana do Natal) e eu e o meu amigo Pedro lá viemos até S.Pedro da Cova – Gondomar – onde todos nos esperavam.